domingo, novembro 06, 2011

ROSA ALICE BRANCO


ROSA ALICE BRANCO (Aveiro, 1950) publicou este ano "O Gado do Senhor", na &etc. Parece-me ser um livro distinto na sua obra poética, no qual uma ironia cínica, mais sistemática (quase sarcástica e herética) se faz sentir, em poemas de temática contemporânea onde Rosa Alice não tenta sequer resolver o caos - ou procurar o belo, - antes se dá bem com o novelo simbólico e metafórico da alusão: se, pontualmente, um ou outro referente nos parece conduzir à tranquilidade do reconhecimento - numa poesia onde vários planos descritivos e discursivos se entrecruzam, provocando o choque da indeterminação, - imediatamente esse sentido surge sabotado para o campo da fealdade, desalojando o leitor do conforto da prosa. A estranheza e a incompletude, por vezes em imagens agressivas e surpreendentes, surgem ao virar da esquina neste livro de Rosa Alice Branco, ao torcer do verso, conduzindo o discurso para um registo subjectivo, pleno de actualidade, da parca condição humana: "Os altares do sacrifício estão sempre acesos. / Somos o teu gado, Senhor.". Doutorada em Filosofia Contemporânea, tem exercido docência na área da Psicologia da Percepção e Cultura Contemporânea tendo reunido a sua poesia em "Soletrar o Dia" (Quasi Edições, 2002).



OFÍCIOS DO MUNDO

Pias são as vacas
aspirando o chão com as manchas brancas
enquanto as negras erguem para o céu
um olhar bovino por cima da casa
onde o pasto secou há muito
no coração dos homens.
Só a vara lhes cabe na mão.
Ofício do mundo. Contar os minutos quilo a quilo.
Fazedores de carne, do livro de contas,
que contarão ao Senhor
no altar do sacrifício
que ele não saiba ou não tenha sido?
No fim da noite bebem o vinho sagrado
de fato sombrio e rosto encoberto
pela lua. Cá fora trocam-se "mus":
mantras de amor sob as estrelas.
Senhor, de quanta compaixão precisas
para apadrinhares o churrasco de domingo?



§



PROVA DA EXISTÊNCIA DA ALMA

Deixaste a ressurreição a meio.
Não me lembro de nada tão incompleto como ela.
O meu director fala de objectivos, fazemos mapas
e somos despedidos se. Ou temos prémios
e corrupção. Haja alguma arte em tudo isto.
Senhor, o teu corpo está seco na gaveta.
Estás no meio de nós coberto de bolor.
Nas palavras de São Paulo a criação teve parto e dores
em relação. Um prelúdio, sabemos hoje, prelúdio
sem mais nada. Os animais não aspiram à eternidade.
Nisto deveria consistir a alma que lhes foi negada.
Por menos despediria eu um empregado.
O meu cão brinca a que eu sou o cão dele.
Atira-me um osso e corro atrás, todos corremos atrás.
Mas é assim que se sobe na vida porque aspiramos.
Prova provada de que temos alma.

1 comentário:

Márcia Maia disse...

Gosto demais de Soletrar o Dia. Gostei de saber do novo livro e de ler os poemas. Muito mesmo.