segunda-feira, dezembro 07, 2009

JOSÉ MIGUEL SILVA (2)

José Miguel Silva (Vila Nova de Gaia, 1969) é um dos mais interessantes poetas portugueses da actualidade, em parte devido à extraordinária força da sua voz poética, uma voz culta e literata que chega a ser politica de tão incómoda e inconformada - denunciando num registo de crueza e ironia (por vezes sarcástica) a corrupção moral da sociedade, - em parte também pela clareza e comunicabilidade dos seus poemas de raiz realista (ou hiper-realista) que ocasionalmente revistam uma infância e uma adolescência dificeis, quase sempre num tom desencantado - a tempos ressentido, - mas onde a surpresa, a creatividade, a originalidade e um fino humor funcionam, a cada passo, como instrumentos de identificação com o leitor contemporâneo. Rui Lage fala mesmo num "olhar mordaz e impiedoso, denunciando um homem reificado e alienado, mas sem a ingenuidade de procurar redimi-lo". O poeta, que chegou a cursar filosofia (c.f. "Faculdade": "Daqui a quatro anos já serás / formado em miudezas / de futuro gradeado e / o mundo vai abrir-se, já o sabes, / num esgoto cor de prata."), trabalha actualmente como prolifico tradutor não apenas no dominio da poesia (Shakespeare, Edgar Lee Masters) mas principalmente da ficção (Iris Murdoch, Don Delillo, Virginia Woolf, Alice Munro, entre outros). Aqui estão quatro poemas (não podem ser mais porque mesmo para a "devida vénia" haverá um limite...):


OBRA POÉTICA
O Sino de Areia, Gilgamesh, Porto, 1999
Ulisses Já Não Mora Aqui, &etc, Lisboa, 2002
Vista Para um Pátio seguido de Desordem, Relógio d'Água, 2003
24 de Março, Gilgamesh, Porto, 2004
Movimentos no Escuro, Relógio d'Água, Lisboa, 2005
Walkmen (com Manuel de Freitas), &etc, Lisboa, 2008


PEDRAS E MORTEIROS (2002)

"Todos os poetas são judeus"
M.Tsvietaieva


Essa dos poetas, Senhora, com vocação
para apanhar no pelo, tem quase tanta graça
como a outra, de chamar vítimas às vítimas
oficiais do século XX. Como se a história
fosse um prato congelado e a moral
o restaurante onde se come mais barato.

Entretanto, nós somos acusados de atirar pedras.
Mas vede, Senhora, não são pedras, é o que resta
das nossas casas, abatidas por Golias.
Na mão que lhe estendemos deixou-nos esta funda.
Que mais podemos nós, senão utilizá-la?

Razão tem a pedra na conhecida fábula
da Pedra no Sapato quando diz:
todas as pedras são palestinianas.

de "Ulisses Já Não Mora Aqui", &etc, 2002


§


POEMA COM APÓLOGO MORAL
(2002)

Há quem diga que depois da batalha de Queroneia,
de Los Alamos, do Rapto das Sabinas,
nunca mais se pode escrever com maiúsculas
a palavra "Deus"; que se tornou imoral
a gente queixar-se à lua de uma farpa no dedo,
do infortúnio, do tempo que perdemos na paragem
do autocarro. Quem o diz que não se pode,
não sabe, não entende o que poesia seja.

Era um homem que vivia a profissão de marceneiro.
É conhecida a ligação do marceneiro com as farpas
que lhe entram na pele. Este falava com elas,
contava-lhes casos de sorte e azar, queria-lhes bem.
Entendia que também as farpas são filhas de Deus,
isto é, do amor que sentia pela sua arte.
Um dia um acidente aconteceu na máquina de corte,
esse homem perdeu a mão direita. Não por isso deixou
de sentir farpas alojarem-se na mão perdida,
de falar com elas, de recomendar-lhes
que tivessem juizo, que fossem brincar para outro lado.

de "Ulisses Já Não Mora Aqui", &etc, Lisboa, 2002


§


DIZIAS QUE GOSTAVAS
(2003)

Dizias que gostavas de poemas.
Escrevi-te, numa tarde, mais de cinco.
São muito bonitos, disseste,
hei-de mostrá-los ao meu namorado.
Nunca mais confiei nos versos
nem no gosto feminil.

de "Vista de Um Pátio seguido de Desordem", Relógio d'Água, Lisboa, 2003


§



BRIEF ENCOUNTER - DAVID LEAN (1945) - (2005)

Quando duas almas, e digo bem,
se enamoram uma da outra,
estamos perante um caso fragrante
de romantismo inglês. A princesa,
o dragão e o senhor chapéu de coco:
tanto basta para um drama
em que o remorso é o artista
principal. São assim os infelizes,
não conseguem partir um prato
sem ficar tolhidos pelo sentimento
de culpa. E por isso, sentem eles,
o melhor é estar quieto na berma
do sofá, e ter medo de tudo,
de tudo menos da infelicidade.

de "Movimentos no Escuro", Relógio d'Água, Lisboa, 2005

1 comentário:

MARCIO MEIRELLES disse...

a tradução de MACBETH feita por j m silva é muito boa. gosttaria de saber se ele traduziu outras peças de shakespeare.