quarta-feira, maio 24, 2023

IVO MACHADO

 


MISERIAE
Ivo Machado
Guerra & Paz, Janeiro de 2023
68 páginas

No mais recente livro de Ivo Machado, miseriae, o décimo quarto da sua obra poética iniciada em 1981, o leitor acompanha, ao longo de quatro dezenas de poemas, a voz poética de um sujeito lírico que reflete acerca das “assimetrias / da vida”, numa incansável procura de onde sobressai, marcadamente, o desalento. 

Prefaciado por Mário Cláudio, o livro apresenta-se dividido em quatro partes (“aurora e crepúsculo se fundem”, “miseriae”, “as estrelas não estão maduras” e “obrigado, senhor Stravinsky”), assimétricas quanto ao número de poemas que as constituem mas próximas na perturbante inquietação que atravessa toda a obra. 

Através da sua leitura podemos acompanhar uma voz reflexiva, profundamente triste e elíptica que em fragmentos líricos daquilo que poderíamos colar num único poema, um longo monólogo interior, retrata primeiro um persistente desalento quotidiano, identificável em temas como a solidão, a tristeza, a passagem do tempo, a memória, entre outros, e depois, com a aparição de um “tu” (amoroso?) no corpo dos poemas, traços de ténue esperança. 

A experiência da morte, próxima (“Voltamos da morte / a dor amadureceu como um fruto”) parece assumir um papel transformador nessa tentativa de metamorfose – aqui pontuam os melros-pretos e a música como elementos salvíficos – constituindo-se também numa oportunidade para questionar a existência do divino (“o Deus que existe ou não em mim / não fala quando espero que fale”). 

Pese embora a dicção presente nos poemas seja maioritariamente concreta, o uso da elipse e da justaposição criam atmosferas pessoais, muitas vezes dolorosas, algo abstractas nas quais o silêncio e a alusão coexistem, num equilíbrio precário que esculpe a mancha gráfica de cada poema numa só página. Pequenas instalações da alma. A este estado de inquietação e melancolia, o autor associa conscientemente a ideia de miséria, precariedade, exiguidade, pobreza, identificando nesse caminho, a região onde se encontra: “O abismo é um lugar / onde o sol não entra”. 

O tom geral é o de uma voz que não se ilude, no sentido em que não mente a si própria, não se ilude quando procura respostas para as inquietações do sujeito poético, satisfeita com nada menos que a verdade. 

Por dura que seja. Aqui e ali levantam-se algumas notas de optimismo (“abri a janela, ajeitei o coração”) como, por exemplo, num dos poemas que mais apreciei (“Às formigas faço perguntas”), onde a voz se perde fazendo perguntas àqueles pequenos seres que, naturalmente, nada lhe respondem prosseguindo com os seus afazeres, afirmando o poeta ser essa “a beleza do mundo”, a possibilidade de prosseguir e continuar indiferente à nossa presença. Passível de encorajar uma reacção: “resistir é perguntar ao Tempo / pela palavra que há-de nascer”. 

Pergunta-me diversas vezes por qual dos livros publicados começar a ler um poeta. No caso de Ivo Machado, miseriae constitui uma boa porta de entrada à sua poética. 

BERNARDO PINTO DE ALMEIDA

 


SICÍLIA
Bernardo Pinto de Almeida
Relógio d’Água, Dezembro de 2022
112 páginas 

Não é a primeira vez que trago a poesia de Bernardo Pinto de Almeida a estas páginas. No ano passado escrevi uma breve nota de leitura acerca do livro “A estrada menos viajada”, editado pela Sr Teste, em Janeiro de 2022. Salientei então aquela que me parecia ser a característica formal mais notória daquele livro “a opção que o poeta faz por poemas magros, esguios, de verso curto e nervoso, a maioria de género lírico, neste e naquele cindindo a última palavra, obrigando o leitor a optar (…) por um de dois caminhos – uma de duas leituras, um de dois sentidos (…)”. 

Esse jogo de cindir palavras mantem-se neste livro – aqui, talvez, com a função mais de comentário por parte do autor ao próprio poema, anotando com a segunda metade da palavra dividida, o sentido dos versos, numa obra construída com poemas escritos num período temporal próximo do anterior, organizados desta vez em três partes: “O Caminho Estreito”, que de certa forma complementa e encerra tematicamente os temas de “A estrada menos viajada”; “Sicília”, o corpo principal da obra; e a coda “Osuna”, com que o poeta remata o livro. 

Existe um profundo sentido ético nos poemas de Bernardo Pinto de Almeida. Toda a poesia é biográfica mesmo naqueles poetas que não assumem abertamente o quanto a biografia contamina os poemas que escrevem; também por isso escrevem poesia, um género que pelas camadas que possui lhes permite transformar em enigma e mistério aquilo que foi quotidiano. 

Esse sentido ético – que é o do próprio poeta e crítico de arte – atravessa os textos de “O caminho estreito”, a primeira parte deste livro, ocupados com incidentes e episódios que à maneira de Antonio Machado traçam um caminho ao andar, resultando tal caminho, como para Kavafis, numa bela viagem. O papel da arte, a estreita relação entre vida e poema, um amor antigo, o divórcio (“A ilha dos amores”, poema sobre a divisão dos despojos é um favorito), bem como outros elementos femininos são alguns dos temas que Bernardo Pinto de Almeida convoca em poemas capazes de prender a atenção do leitor por três, quatro páginas, dada a graça, a limpidez, a surpresa destes versos maduros, intensos, eufónicos, alusivos, dos quais não está ausente o humor. 

A mesma qualidade assiste à escrita das partes seguintes do livro, “Sicília” e “Osuna”, que dão testemunho da vivência do poeta, primeiro por Itália, uma das suas paixões, depois pela localidade espanhola onde a presença do amor, presente na dedicatória, se mantém viva através da beleza. 

Mas nunca é somente de lugares ou rostos que os poemas falam, antes da densíssima memória cultural, histórica, arqueológica, geográfica, arquitectónica, artística, literária de Bernardo Pinto do Amaral. São convocadas localidades (Nápoles, Catânia, Agrigento…), personagens históricas ou mitológicas (Mnemosyne, Anaximandro, Ulisses…), pintores (Morandi, Fra Filippo Lippi, Caravaggio…), escritores (Dante, Dylan Thomas, tantos…) que informam os versos com a pertinência e a naturalidade de quem escolheu viver o tempo ideal (Kairos) no tempo actual (Cronos). 

Com densidade. Para Bernardo Pinto de Almeida, a memória e a história colectivas fazem parte da viagem que começou nos livros, na arte, no estudo ainda antes de a viagem ter começado, e com os quais, diante da geografia aludida, dialoga agora, homenageando personagens e lugares com inteligência e paixão. Com sentido crítico, sim, comentando os tempos actual e antigo, mas com uma indisfarçável paixão pela beleza da matéria poética, o erotismo, “as pequenas coisas / em que a luz / mal chega a caber”. Porque, na essência, todas aquelas referências permanecem vivas, presente e passado, moldando-se ainda mutuamente. 

É um dos mais jovens autores portugueses que urge descobrir. Se nenhuma nota de leitura substitui a leitura de um livro ou a felicidade de deparar, como em “Sicília”, com versos perfeitos, complete-se esta nota com a leitura do livro.

CLÁUDIA R. SAMPAIO

 


UMA MULHER APARENTEMENTE VIVA
Cláudia R. Sampaio
Porto Editora, Maio de 2022
68 páginas  

Uma mulher aparentemente viva” é um objecto curioso e corajoso. Composto por uma “Carta a mim mesma”, seguida de longos poemas, numerados de I a XI, é um livro em que o corpo principal da escrita vai sendo intercalado com monólogos em discurso directo, identificáveis pelo grafismo em itálico que, de certa forma, informam e comentam os poemas que o sujeito lírico escreve, aqui e ali num tom irónico. 

Cláudia R. Sampaio nasceu em Lisboa em 1981. Poeta e pintora conta até ao momento com sete livros de poesia publicados. “Uma mulher aparentemente viva”, obra íntima e muito pessoal, proporciona-nos a leitura de textos que nos trazem, numa linguagem simbólica, momentos em que uma personagem feminina, cansada “das coisas visíveis”, ousa imaginar “ir contra as coisas”, “tentando ser mais do que aquilo que (...) parece”, num processo íntimo de descoberta, árduo, não sem obstáculos, mas persistente e de certa forma feliz, através do qual tenta descobrir e descobre o seu lugar no mundo, entre as coisas e as outras mulheres. 

O discurso é contaminado por símbolos (“o chapéu magnífico”, por exemplo), passível de nos transportar para ambientes oníricos, surreais que, de resto, a autora pinta não apenas com palavras mas também com 6 desenhos que surgem reproduzidos no inicio do livro onde identificamos influências (Cruzeiro Seixas, Marc Chagall, Frida Khalo, por exemplo) que nos deixam “sorrindo com a estranheza”. 

A estratégia usada pela autora de escrever a duas vozes é assaz interessante: em letra normal, o sujeito lírico apresenta-nos todo esse processo, doloroso, intenso, de forma objectiva, refreando os sentimentos, e a itálico, outra voz comenta esse processo. Na primeira, mais narrativa, são predominantes os tons de ternura, empatia, compaixão; sendo um tema passível de ser abordado com os sentimentos à flor da pele, é justo assinalar-se que a emoção é contida por uma racionalização do processo, onde identificamos, por exemplo, o cansaço de existir, a ameaça da desistência, dúvidas, hesitações, imobilismo, num processo de descoberta pessoal que deixa a nu a mais profunda solidão na qual o sujeito poético se redescobre, reinventando-se. 

Na outra, a itálico, e com um tom por vezes irónico e humorístico, a autora ri-se (“Cambaleio um pouco por causa dos desníveis da vida”), se tal é possível, do seu próprio sofrimento, confidenciando com o leitor, antevendo reações do sujeito poético, adivinhando atitudes num processo de ironia cósmica, próprias de quem sabe de antemão o que irá acontecer, o que lhe permite ir onde a outra voz só iria ao preço do confessionalismo exacerbado (“Cada solidão tem as suas próprias impressões digitais”), tentando fazer do leitor cúmplice da comunicação e do sofrimento (“Caro leitor, pense nisto / Terá também, por certo, a sua própria solidão”). 

Inicialmente isoladas, é curioso perceber como nos poemas finais as duas vozes se vão progressivamente mesclando em vários poemas, dialogando entre si, mostrando que quem fala é um e o mesmo sujeito lírico. 

Os 11 quadros traçam uma narrativa de sobrevivência (“Se nada mudasse, por certo iria morrer”; “E se deixasse de respirar?”), num longo processo onde a transformação é uma questão de sobrevivência que encontra a solução em si própria (“Eu sou eu!”), com a força de um Adamastor. E há tempo para o Humanismo e para a empatia: “que bom é cair / porque normalmente não se pode cair em / nenhum lugar, / querem sempre um levantar / não entendem que é preciso cair, / é preciso estar junto ao chão / para se subir em verdade e ver fundo”. Nesse sentido, um dos momentos favoritos do discurso poético surge quando a voz transforma o tema do livro: a palavra “solidão” surge, por três vezes, fragmentada, em três linhas diferentes, silaba a silaba: “So / Li / Dão”. 

Música. Melodia. A voz lírica já canta. Nesta poética da identidade feminina, “a mulher ergueu-se”. Porque a voz lírica “decidiu dar-se uma oportunidade / (…) estar atenta à luz”. Para que o mundo volte a existir. A cores.

JORGE GOMES MIRANDA

 


A ÚLTIMA PEDRA

Jorge Gomes Miranda

Assírio & Alvim, Setembro de 2022

184 páginas

 

Não é de todo novidade na escrita de Jorge Gomes Miranda a utilização de máscaras, isto é, a escrita de poemas numa voz que não é exactamente a sua, naquilo que se tornou um traço distintivo da sua poética. Recordo-me vivamente do belíssimo livro “O Acidente”, editado também pela Assírio & Alvim (e traduzido em Espanha), no qual através de uma sequência de poemas cujo fio condutor desenhava uma narrativa eram os objectos (“No poetry but in things”) que em monólogos dramáticos, falavam nos poemas.

 

Também em “A última pedra” existem caracteristicamente vozes, uma multiplicidade de vozes, masculinas e femininas, novos e velhos, a falar desde o poema. A questão que se coloca ao leitor é a de saber se se tratam de vozes imaginadas (velhos e crianças que nascem da imaginação do autor) ou vozes de pessoas que têm ou tiveram uma existência real e com as quais o autor contactou e às quais pediu emprestada a vida: velhos e crianças que surgem da experiência.

 

Este processo nunca é simples porque é quase sempre híbrido. Imaginação e experiência concorrem simultaneamente para o momento da escrita e se em “O que nos Protege” ou “Requiem”, anteriores obras, o “trabalho de desvio, máscara, personagem, voz alheia ao autor quase não está presente”, em “A última pedra”, apesar de tudo, o jogo é misto.

Os lugares que os poemas evocam são reconhecíveis: o cemitério, casas de repouso, habitações, o espaço da família e do lar onde filhos, pais, mães, crianças, vidas tristes (“Sem anjos da guarda ou ansiolíticos”) são trazidas pela mão da memória (“Aqui poderíamos recordar / tranquilamente as brasas / do passado”), em rituais fúnebres, despedidas, momentos de dor que acompanham a perda (“Certos dias abrem feridas, / são nenhum bálsamo, / flores secas ao redor de / uma campa, / no cemitério do coração.”). É um livro extensamente dedicado aos mortos de Jorge Gomes Miranda. Os seus mortos. Com poemas caracteristicamente curtos (de género lírico e por vezes narrativo, a maior parte das vezes monólogos interiores), quase sempre tecidos na fronteira fina entre poesia e prosa. Uma escrita crua, austera, ética, exacta, de adjectivo preciso, emoldurada pelo espaço branco do silêncio que rodeia a mancha gráfica do poema, centrada no imo da página; poemas breves – a lembrar curtas-metragens – com uma total ausência de pirotecnia verbal; poemas sentidos sem qualquer réstia de sentimentalismo.

 

Num certo sentido, esta é também uma poesia de objectos (cf. “Infância da poesia”) e há poesia nesses objectos que ocorrem na vida das personagens onde a idade é sinónimo de solidão, desamparo, afastamento, tristeza, amargura, lamento, dor que elegia nenhuma poderá apaziguar (“contemplando tanta aceitação, grito”) mas também disponibilidade, compreensão, ensinamento, consolação, memória, afabilidade (“Mãos que passaram de avó / para mãe, e de mãe para filha.”), personagens estas demasiado bem caracterizadas para serem completos desconhecidos – personagens que percebe-se, cruzaram-se directa ou indirectamente com o autor.

 

A poesia é assim “retrato da dor, / preparação para a morte.”; não esconde o seu direito ao sofrimento, a autorização da dor em momentos essenciais ao futuro. Aqui se diz: “Escrevo, recordo nomes / de amigos, lugares / tão preciosos como fotografias”. A poesia tece-se na relação indizível entre as personagens e o poeta, na vulnerabilidade que tantas vezes se cala mas que aqui se expõe, em descrições de fragilidade que curiosamente são a sua força, a “euforia de um verso claro”, revelando-se “agora na labareda / que a proximidade / da morte alimenta.”

 

Lado a lado com os velhos, há as crianças, símbolo da descoberta, da alegria necessária para transpor a perda, para os que têm de continuar “o absurdo quotidiano”. É justamente o equilíbrio entre o dito e o contido, a característica maior da poesia de Jorge Gomes Miranda, a finíssima linha onde se urdem os seus poemas. Onde não se permitirá a mágoa.


 

ANDREIA FARIA

 


CANINA

Andreia C. Faria

Tinta-da-China, Julho 2022

96 páginas


 

Como o leitor já certamente notou, não constituem estas notas crítica literária mas somente pequenas conversas sobre livros. Ou, se quisermos, breves notas sobre poéticas. O aspecto que me parece mais característico da poesia de Andreia C. Faria – e que a torna, de entre as autoras novíssimas, a mais próxima de Herberto Helder – é o facto de ser, na essência, uma poética de imagens.

 

Imagens de todo o tipo, naturalmente: imagens literais, imagens perceptuais mas, sobretudo, imagens conceptuais, o que faz desta uma poesia de difícil compreensão, dado que este tipo de imagens – que se constitui, como se sabe, de símbolos que podem ser universais ou privados – é feita, quando falamos de poesia, de signos frequentemente pessoais (atente-se ao caso de W.B. Yeats), o que por si só é passível de trazer dificuldades adicionais ao leitor.

 

Esta impressão de inacessibilidade que este género de poética transporta – porque exige bastante mais do leitor no processo da leitura (“deixando em quem te lê alguma coisa / florescer”, nota a poeta) – deverá, ao invés, ser tomada como um desafio, um ponto de partida que não sendo de todo complexo no que às imagens literais (“a ferrugem num portão / aberto em frente ao mar”) ou às imagens perceptuais diz respeito (por exemplo, a sinestesia “a rouca violência de um pavio” ou o símile “Nada rectifica a noite como andar de caravela pela insónia”), já quanto às imagens conceptuais reveste-se de um maior grau de dificuldade no momento de as tentar materializar (“o porte mudo e aromático de um coração”).

 

Mas deveremos, enquanto leitores, tentar materializar um símbolo? Dirá o leitor (vindo das ciências, por exemplo) que um coração não só não tem um porte mudo, como não possui um aroma agradável; que aceitar a imagem de um coração proposto nestes exactos termos é dar um salto de aceitação – uma suspensão de crença – que o leitor de poesia pode não estar disposto a dar. Ora, na poesia de ímpeto expressionista (e na poesia simbolista), a dita suspensão de crença funda-se na plena aceitação à priori de que qualquer justaposição de imagens – e por maioria de razão, de sons – que o poeta nos proporcione é válida, e é a sua. Um símbolo é uma imagem que transporta conotações (por vezes múltiplas) para dentro do poema.

 

Na maior parte das vezes agreste, num processo que visa plasmar a inquietação e a inconformidade da persona que fala nestes textos, esse processo inicia-se este livro desde cedo pelo símbolo do cão recrutado para título, não exactamente o cão-biológico mas o cão-comportamento, o cão-adjectivo, transportador das inúmeras características que, do animal, são passíveis de ser transferidas para o humano. A condição humana (e feminina) vista pelos olhos da condição canina. Nesse sentido, a fruição dos versos que aqui se propõe destina-se a ser efectivamente física, hiperbólica, feroz, múltipla sendo o leitor convidado a percepcionar essa visão cumulativa de imagens que é a visão da persona que fala nos poemas. “É a quotidiana paz possível, / o modorrento real, absoluto”, escreve a autora. Num tom elíptico e crestado, os poemas recrutam imagens do subconsciente de quem se exprime (“Escrevo as coisas que das mãos / me caem, rachadas e celestiais.”), através de uma linguagem inquieta, ricamente alusiva, marcada por uma dicção deliberadamente agreste e de sinal negativo (cf, logo no primeiro poema, “canina”, “devassa”, “lanhos”, “arroubo”, “ladra”, “indigesto”), linguagem essa que se por instantes é passível de causar rejeição (por não ser agradável, e é essa mesmo a intenção), aparece mesclada por tons de coloquialidade (“Come e dorme com regalo, / pela tarde beberica”), o que tem como efeito final reaproximar o leitor, e levá-lo com a oralidade que contém.

 

Curiosamente, mais adiante na obra, a autora parece que se antecipa a esta visão e responde-nos, leitores, com uma versão mais branda da sua voz: em “Mudar de luz”, os poemas são mais curtos e desenvolvem-se através de uma sintaxe mais clara e menos elíptica, não variando o tema significativamente; e na terceira parte, a dicção procura deliberadamente a “Beleza suficiente” (título) em peças de prosa poética onde a dicção é menos agreste. Porém, no conjunto da obra, esta é uma voz que dá e tira, que afasta e aproxima, que atinge e afaga, recusando o apaziguamento, deixando claro desde cedo que existe um avesso para o lado menos ferido da vida (“Quem dera à linguagem a nobreza fria, / afundada, do excremento, / Ela existe como coisa ferida”). O que faz de Andreia C. Faria uma das vozes mais inconfundíveis da actual poesia portuguesa.

 

ROSA ALICE BRANCO

 


AMOR CÃO

Rosa Alice Branco

Assírio & Alvim, Março de 2022

80 páginas

 

Konrad Lorenz, Prémio Nobel da Medicina de 1973, zoólogo austríaco que entregou uma parte significativa da sua vida ao estudo do comportamento animal, empresta as epígrafes aos poemas desta obra de Rosa Alice Branco que se desenvolve em 44 poemas. São textos que tratam da relação do homem com o cão, uma relação assimétrica – de poder, por parte do dono que decide, dá ou castiga; fidelidade, por parte do animal que agradece e está. Mas, antes disso, o assunto das primeiras oito, nove peças recupera o homem do paleolítico, a tribo, os movimentos nómadas, a fogueira onde se aquecia e cozinhava, e a relação com as outras espécies: a aproximação do chacal e do lobo até, por fim, chegarmos à domesticação do cão, então familiaris: “Quando o colectivo oferece vantagens inegáveis / damos as mãos”.

 

Pode dizer-se que cada poema se inicia com a antropologia de Lorenz para se desenvolver e terminar na sociologia de Rosa Alice Branco, um salto evidente das coisas concretas para os conceitos abstractos. Assiste-se aqui e acompanha-se um percurso que se terá iniciado na tribo à volta de cujo acampamento os chacais rondavam, para muito rapidamente nos apercebermos enquanto leitores de que, em boa verdade, os poemas nos estão a falar de fluxos, preocupações e acontecimentos de tribos urbanas contemporâneas e que os chacais, em particular, são metaforicamente outros; que ao mesmo tempo que acompanhamos aquele processo de milénios através das epígrafes e do incipit de cada poema, a poeta muito diligentemente nos transporta para a contemporaneidade: “Às vezes / pensamos saber quem nos periga e ao fugirmos / caímos no laço do maior engodo. Falinhas mansas, / palavrinhas doces”. É a outro sítio que os poemas querem chegar, da epígrafe à epifania, nesse salto de milénios.

 

Com o avançar na leitura veremos como os poemas se vão centrar na relação do homem com o cão, evocando por exemplo, momentos que se prendem com a predação, o processo de domesticação, a função de proteção, o acto de submissão, mas também mais adiante, a obediência, a fidelidade, o acasalamento, a companhia, o treino, a maternidade e a morte, assim como outros aspectos da relação entre as duas espécies no que à aparente relação de poder do homem sobre o cão diz respeito – ou quiçá, melhor, a relação de poder que o cão (que também domestica o homem) tem sobre este – quer quando se consideram as duas partes envolvidas no sentido literal (humano e cão), quer no sentido metafórico (entre humanos).

 

Torna-se evidente o modo como a autora se delicia em inúmeros versos a assinalar o paralelismo com ironia e coloquialidade. São relembradas imagens do “lobo solitário” e de “alcateias de homens” como símbolo desses comportamentos. O poema 16 é um excelente exemplo: dois cães (dois homens, se quisermos) detestam-se cordialmente um ao outro (propõe a epigrafe de Lorenz). E remata Rosa Alice Branco: “Mas é imperioso mostrar / que o prestigio não mascara a cobardia. Alçam / as orelhas, os cantos da boca e rosnam surdamente. / Esgrimem flanco contra flanco, rodam / em círculo como um ritual de iniciação e / farejam-se anal e lentamente. Finda a cerimónia / afastam-se ufanos e altivos pela vitória / de tanta contenção.” O leitor sorri ao recordar-se de semelhante ritual na última reunião da sua empresa.

 

Este gosto pela ligação da poesia a outras disciplinas – Biologia, Arte, História, Filosofia, outras – é o que de melhor a poesia contemporânea tem para oferecer. Poemas com vários estratos de leitura, livros com estrutura, que não deixem os poemas soltos mas acrescentem sentido e colem a obra. No livro em epígrafe, é possível perceber (num estrato mais profundo) como esta colecção de poemas de Rosa Alice Branco arranca do tema do Instinto para terminar na Razão, não sem que se verifiquem desvios ocasionais pela Intuição e pela Emoção: “Se Lorenz dá sentido aos sons / que imitam o verso, é porque o sigo como cão lupino”. Fica a certeza de que António Damásio haveria de apreciar este livro.

RAQUEL NOBRE GUERRA

 


DIVISÃO DA ALEGRIA

Raquel Nobre Guerra

Tinta-da-China, Março de 2022

152 páginas

 

Raquel Nobre Guerra nasceu em Lisboa em 1979, onde fez a Licenciatura e o Mestrado em Filosofia. Autora premiada regressa à publicação após um interregno de alguns anos, com uma obra que confirma a sua voz entre as poetas da sua geração.

 

Nos textos que nos propõe, os primeiros versos partem frequentemente da oralidade – são, em tom, coloquiais – desenvolvendo-se os poemas por rápidas associações de imagens, num fluxo ansioso, resultando o poema numa escrita metonímica e alusiva, a maior parte das vezes de género lírico (“pertenço ao que digo para que a vida / (...) / não fique apenas em mim”) mas também dramático, em monólogo interior (“vou gostando dos pensamentos que vou tendo”).

 

Este processo é claramente assumido com uma vontade de escrita – como revela a peça “A poesia é uma conversa a ter” (“Às vezes um evento de título mínimo / acende o mundo”) – sempre contaminada de actos e factos quotidianos que se vão sucedendo diante dos olhos (ou no pensamento) da poeta, assim se dê o caso de surgiram no exacto momento em que se encontra a escrever. Existe nesta voz uma imensa disponibilidade para capturar as coisas do mundo.

 

Precisamente devido a este processo de associação, o resultado é uma escrita concentrada, tensa, elíptica, cabendo ao leitor preencher (com a sua experiência e imaginação) o salto lógico – frequentemente não explicito – entre as imagens propostas, imagens essas que vão sendo sequenciadas por justaposição ao longo do poema, e às quais o leitor surpreso reage mais vezes com o choque da estranheza – e do esforço, acrescente-se – do que com o consolo da lógica. Essa conexão entre versos cabe ao leitor, no exercício de ler o poema, fazer.

 

Pelo facto de a dicção ser maioritariamente concreta (e reconhecível) pode parecer que se trata de uma poesia simples. Não é. O que não deixa de ser curioso já que a escolha das palavras (ainda que maioritariamente concreta, por ser uma poesia de referentes) é passível de gerar uma experiência de leitura abstractizante (por vezes até surrealista), seja pela frequente utilização de figuras lexicais como o anacoluto (que desvia e acrescenta outro fio de discurso), seja por uma muitas vezes bem-sucedida felicidade verbal (principalmente na primeira parte do livro) que busca a estranheza e a novidade também no título dos poemas (alguns dos quais verdadeiros achados, pelo efeito de suspensão que convocam no leitor). Mas também pela procura de efeitos lúdicos: “há em todas as civilizações uma filosofia / um dente enterrado na bochecha da lua”. É o gozo da linguagem, a lembrar por vezes Miguel Manso (e muitas vezes Frank O’Hara, por “dar ao mundo o tom de conversação fácil.”).

 

Este livro de poesia de Raquel Nobre Guerra pela extensão de assuntos a que alude, seguramente que contém uma poética da vida, ao coleccionar o que lhe é familiar, aparentemente não excluindo nada, não sendo por isso estranho ver-se a palavra alegria – alegria de ver, alegria de descrever, alegria de estar e de pertencer – presente no título de um livro que é composto por três ciclos de canções (da manhã, da tarde e da noite), seguidos de oito poemas dedicados ao pai da autora onde são predominantes tons de confiança, ousadia e resolução, quer na voz do eu social (“o mundo oferece coisas que não quero”) quer nos versos do eu lírico (“parece que toco com a palavra a beleza e tu / quase pertences ao que digo neste instante.”). Um pequeníssimo senão deste leitor em concreto: pareceu-me um livro longo. Do mesmo modo que aprecio num poema a economia e capacidade de concisão, gosto de perceber que num livro de poesia existiu uma selecção de entre os poemas produzidos pelo autor; um livro de poemas não deve ser um arquivo do que o poeta escreveu num determinado período de tempo. Tão vasta colecção de poemas, contudo, proporciona-nos a oportunidade de apanhar Raquel Nobre Guerra em flagrante de escrita – colhendo e bebendo do mundo.

SALVADOR SANTOS


SELVAGEM

Salvador Santos

D. Quixote, Junho de 2021

96 páginas

 

Pela badana do livro ficamos a saber que Salvador Santos nasceu em Chaves em 1979, e que frequentou o curso de Estudos Portugueses da Universidade do Algarve, região onde vive desde os quatro anos. Selvagem, livro de poemas dividido em quatro partes é a primeira obra de sua autoria.

 

A primeira parte, que me maravilhou, dedica-se ao diagnóstico do lugar. Os poemas lêem-se sofregamente como se os títulos que os encimam não constituíssem uma divisão. A experiência de leitura é tematicamente próxima da de um romance de John Steinbeck (ou de William Faulkner, por exemplo), transmitindo um olhar realista, poético, maduro mas também terno e afável sobre as coisas – e os homens –, recuperando dos lugares o que ainda resiste, destacando-o do que já é destruição. Ruínas e pessoas. Casas e pescadores. Trata-se, na essência, de uma visão crítica de quem tendo nascido a Norte, pertence desde cedo ao lugar sobre o qual fala, o Algarve, e o vê avassalado de variados modos: agudamente pelos “turistas a arrecadar o verão” e cronicamente por “funcionários municipais que foram presos por corrupção”.

 

A tudo o poeta assiste da “janela repetida” do seu prédio, no “bairro que se acumula”, escutando as aves, sim, mas sentindo-se “no avesso da sua canção”. Vê e regista mas não julga, limitando-se a dar testemunho das marcas do, assim dito, progresso bem como dos traços de miséria com a qual aquele se cruza; por um lado o submundo da “electricidade desviada a cruzar-se em novelo sobre os telhados de chapa”, por outro, o “ócio das praias” num cosmos hiper-realista de “velhos pescadores”, onde as sombras do passado histórico também comparecem como por exemplo no poema “Mercado”, onde se alude à “alfândega onde se comerciavam homens” (“Em Lagos, só a memória corrompe a brancura de tudo.”). Adiante, na terceira parte, Salvador Santos escreverá a “Canção dos Brancos Negros”, uma versão contemporânea do mesmo tema, demonstrando como, numa mão-cheia de séculos, pouco mudou do essencial.

 

O autor pratica preferencialmente o poema longo, que melhor serve o seu ímpeto descritivo, de verso livre, com belas imagens que surpreendem pela precisão (“Os barcos de madeira que se afundam nos sapais poderiam ser o peito descarnado dos pescadores. Vértebras, esterno, costelas.”), transportando-nos mentalmente para uma geografia litoral de baldios e abandono, à qual a civilização conquista espaço como erva daninha – vieram-me à memória os longos poemas sobre pescadores que Amadeu Baptista publicou na revista Hífen, nos anos 80. Porque é sempre inconformado o olhar: “O que sobra dos dias é o desconforto de não me apetecer coisa / que se conheça nem que se saiba.”

 

A mesma inquietação irrompe também – clara, lúcida – noutros poemas onde se fala de imobilismo, tédio, do vazio das casas, da ausência de crianças, do contraste entre os que ficam e os que optam por partir (cf. “Arqueologia”: “Não temos outra forma de estar aqui (...). Não temos outra utilidade para estas tardes”) porque “Há muito que o nosso ofício é enterrar este lugar.” E presente-se, ciciante, a difícil decisão de quanto investir, quanto se envolver, em que medida entregar o coração.

 

Nas restantes partes do livro, a voz torna-se ainda mais pessoal (“tudo isto me pesa como uma subida íngreme”). Na terceira parte, por exemplo, abordam-se temas da actualidade, em poemas que pela falta de distância histórica são sempre mais difíceis de escrever e com os quais é arriscado tentar a síntese. Na segunda parte, os poemas tendem a ser mais curtos, e são inúmeros os versos que surpreendem por estarmos perante uma obra de estreia. Muito belo o poema “Pele”, onde se escreve acerca de um casaco que o autor herdou após a morte de um amigo. O tom geral é o de tristeza e ennui (“somos uma hospedaria de tédio”). É agora do Algarve humano que se escreve. Em “Baldios”: “Trazemos os dias cinzentos e frios impressos na alma. (...) Nada ocupa este vazio de não nos sentirmos realizados”. Na quarta parte, por fim, em “Outra voz” (“Quem me fala desses corpos sem rosto?”), num tom descritivo e resignado, a voz poética é de novo o espelho desse mundo a Sul abordado no início, e a voz é credível porque não tenta a nota esperança (“Mas qualquer desses sentidos seria tão falso / como a transpiração cega das estradas”).


As coisas são o que são. O que faz deste livro uma boa surpresa e do poeta uma boa descoberta; um jovem poeta cujas próximas obras vou fazer questão de acompanhar.

quinta-feira, novembro 24, 2022

MARCO MACKAAIJ

 


PEQUENO-ALMOÇO COM BILLY

Marco Mackaaij

On y va, Agosto 2022

72 páginas

 

É um dos livros surpreendentes do trimestre. Marco Mackaaij (Amstelveen, 1970) nasceu nos Países-Baixos e vive em Portugal desde 1995. Lecciona Matemática na Universidade do Algarve, e escreve em português: publicou dois livros de poemas – E se não for (2015) e Em Segunda Língua (2018) – e uma plaqueta, Perdidos e Achados (2017), e regressa agora à edição com Pequeno-almoço com Billy

A mais valia desta poética não está exactamente na procura de uma dicção singular com uma “taxa de lirismo” acentuado, que embale o leitor com a beleza dos vocábulos mas no carácter lógico dos poemas cuja chave de compreensão reside muitas vezes em conhecimentos de Matemática, Astrofísica, Filosofia, Sociologia, História, mais do que numa qualquer banal vivência da realidade, algo a que o leitor português de poesia, tendo sido muito marcado pela pauta do simbolismo francês, não está de todo habituado. Mas que é comum nas poéticas que evoluíram do imagismo anglo-saxónico ou noutras poéticas centro-europeias ou de Leste (lembremo-nos de Hans Magnus Enzensberger, Remco Camper ou Mirolslav Holub, entre tantos), nas quais a conexão com o leitor se faz mais pela inteligência, pelo raciocínio e pela ironia das imagens, do que pelo choque sonoro de signos. 

E não traí a sua origem, a voz que aqui fala. Desde logo porque esta é uma poesia que não se queixa, não se lamenta, não cultiva a melancolia, antes é positiva (“há que aproveitar o que há”), mostrando uma evidente preocupação em contar uma história como queria Frank O’Hara, gerindo silêncios e suspense em pequenos textos cuja geografia, nas três partes que compõem o livro são a de um holandês em Portugal, a de um europeu no Mundo, e por fim, a de um “português” que se quer europeu. 

Para tanto, Marco Mackaaij constrói a macro-realidade fixando com atenção o detalhe, observando agudamente o que o rodeia, por exemplo, criticando a construção imobiliária desenfreada (cf. Os Salgados) ou a hipervigilância das redes sociais (cf. LinkedIn), tendo sempre em mente os versos de Northrop Frye (“The center of reality is whereever / one happens to be, / and its circunference is whatever / one’s imagination can make sense of.“), seja para os mais altos desígnios daquilo a que chamamos vida, seja para escrever poemas sobre temas tão prosaicos quanto gastronomia, neste ou naquele poema trazendo à memória do leitor, o extraordinário livro de Egito Gonçalves, E no entanto move-se

Marco Mackaaij transcende assim a mera realidade, ao procurar sentidos ocultos (que acredita que existem) nas geografias (e nos acontecimentos) nas quais, e com os quais, se vai deparando, sendo este portanto um livro de poemas que pressupõe a existência de leitores (com quem o autor dialoga) e que se apercebem, por sua vez da existência de um poeta-actor, de uma biografia activa, de factos vividos pelo poeta que não fogem, por exemplo, à menção de nomes comerciais contemporâneos (Ryanair, Panini, iPhone, Booking.com, LinkedIn, Uber, SEF, Brexit, Google, SNS) na justa medida em que essas marcas e siglas existem, e que por isso, não há absolutamente razão nenhuma para que não sejam incluídas da poesia contemporânea portuguesa, aqui e agora, no exacto sentido em que são úteis ao poeta, ao exercício de uma narração elíptica que deixa sempre o pormenor essencial da compreensão do poema para que o complete o leitor,  socorrendo-se da sua experiência e imaginação, para desvendar o mesmo. 

De passagem por diversas cidades estrangeiras, por exemplo, na segunda parte do livro, o poeta tenta ler nos acontecimentos, nos cenários e na cultura dos lugares, uma verdade essencial, um pormenor especifico, não como mero turista que estivesse de visita, antes emprestando-lhe o seu pensamento, como quem se recusa a viver os sítios sem os pensar. O que fica destes textos é a inteligência com que foram construídos. Esse estrato de leitura.

 

ADÍLIA LOPES

 


PARDAIS

Adília Lopes

Assírio & Alvim, Julho 2022

72 páginas 

 

Cada livro da autora lê-se sempre com duas terríveis perguntas na cabeça: pode tanta inocência ocultar algum cinismo? Pode tanta simplicidade esconder ironia? 

A verdade é que a poesia de Adília Lopes é reconhecível em qualquer lugar do mundo lusófono; segundo julgo saber, no Brasil, existe mesmo o adverbio “adilianamente”, o que de certo modo corrobora a minha suspeita de que Adília Lopes é a prima portuguesa que Paulo Leminski não conheceu. 

Adília é tom e é persona. Diz quem priva com a autora que Adília “é mesmo assim”, tal como escreve. Os seus textos (muitos deles em prosa) são atravessados por uma candura, uma inocência e uma ingenuidade desarmantes, mostrando uma obsessão extrema pela descrição e pela narração de detalhes, não só como alguém que procura a verdade do Mundo mas como alguém que quer ter a certeza de que a mesma não só é transmitida ao leitor, como também correctamente apreendida por ele: “Outra coisa de que gosto em casa é de ver a luz da rua apagar-se no castiçal do piano que tenho na casa de estar. O castiçal é de metal, reflecte a luz da iluminação pública”. Assim, tudo explicito. 

Esta obsessão explicativa está patente também, por exemplo, na assinatura que cada texto exibe do local e do dia exactos (o mês em numeração romana, o que não é despiciendo) onde o mesmo terá sido escrito, ou finalizado. Os poemas têm um cariz quase exclusivamente biográfico – desta vez encimados pela imagem conceptual pura, simples e livre de um pardal, como Adília – assumindo outras vezes a voz de raciocínios lógicos do tamanho de um aforismo ou de um slogan, não poucas vezes informados por temas religiosos ou ditados colhidos directamente da sabedoria popular. 

Adília recorre frequentemente à tradição, não apenas a literária (neste livro responde a versos de Cesário Verde, Fernando Pessoa e Gil Vicente) mas também, e principalmente, à secular sabedoria oral do bairro onde habita e onde aprecia viver, transmitida, imagina-se, de vizinho para vizinho, de geração para geração. A persona destes textos fala ao leitor num acento cândido, puro, desprovido de excessos, gerindo em cada parágrafo o espaço em branco (ou seja, o silêncio) de modo a convidar o leitor a parar, ver e reflectir, resultando este processo muitas vezes em ironia, uma vez que desarma o leitor com a candura do que parece óbvio; podermos ver o óbvio escrito num livro de poesia, parece-me ser o achado maior desta poética.

 Existe nestes poemas muito trabalho arqueológico de devolver à poesia o que já foi metáfora (no início das linguagens) mas que agora é cliché, o que significa que Adília escreve, na minha opinião, mais com o ouvido do que com o olhar, e ciente disso, cria uma poesia passível também ela de ser transmitida como um slogan – “Sem liberdade não há felicidade.”; “Sem democracia não há alegria” – desvelando com isso um primacial prazer pela vida e por estar viva, em exercícios líricos habitualmente espantados com o banal.

Esse mesmo espanto por descobrir parece assistir à reprodução, na segunda parte do livro, de 12 desenhos da autora feitos com a mão esquerda em Maio de 2022, partindo do “Cogito, ergo sum” de René Descartes. Os desenhos são de péssima qualidade mas não é esse o ponto: a máxima “Penso, logo existo” (“Penso, portanto sou”) é escrita pela autora ao longo de uma semana e meia em sucessivas tentativas com a sua mão não dominante, acompanhada de um torvelinho gráfico, e o que se verifica é que a caligrafia não sofre qualquer melhoria, tentativa após tentativa, contudo representa para Adília um desafio diário, um jogo pessoal, a prova de que a autora está viva e continua viva, a demonstração de que pensa, logo existe, e isso parece ser suficiente. Viva, como um pardal. 

Já na terceira página do livro, a autora havia feito publicar uma foto a preto e branco de uma divisão da sua casa onde são visíveis inúmeros objectos que bem podiam ser assunto de algum dos seus poemas, como se de um Cabinet de curiosités se tratasse – uma bela imagem resumo do que constitui esta poética colecionada dia a dia, onde os pardais do bairro passaram agora a ter também, com este livro, definitivamente o seu lugar.

SÉRGIO ALMEIDA

 


REVOLVER

Sérgio Almeida

Guerra & Paz, Maio 2022

80 páginas

 

Ao contrário do que à primeira vista podemos ser levados a pensar, o título do mais recente livro de Sérgio Almeida, Revolver não é o substantivo sinónimo de “arma” mas o verbo sinónimo de “remexer” ou “revirar”. 

Este primeiro jogo de linguagem com que o autor nos surpreende – e que, de certa forma constitui, a meu ver, o primeiro poema do livro –, prepara o leitor incauto para um regresso ao passado num processo que ameaça não ficar pela superfície das memórias, mas que se propõe escavar as sucessivas camadas que o tempo sedimentou, e cuja recuperação se pode vir a revelar dolorosa como o efeito de um disparo, ou no mínimo, pouco asséptica como um remexer de lama. 

Para o autor “O passado é uma arma carregada de memórias”. O livro dá-nos a ler 45 textos que revisitam temas como a infância (“fazíamos do limiar da realidade a nossa habitação permanente”), a família, o amor (“nem por um segundo apenas desejo libertar-me desse peso”), a morte (“Tenho medo de perder o medo da morte”), a vida quotidiana (“a sinuosa vontade de passar / a limpo a incerteza dos dias”), a actualidade (não fosse o autor um atento jornalista), poetas de eleição e a própria poesia (“Enquanto mastigas as palavras / e lhes trituras as vértebras, / há versos que se alimentam / do teu íntimo.”), entre outros tantos temas como seja a descrição de objectos de que é exemplo Inventário dos meus pertences mais valiosos, o meu favorito neste livro. 

Uma das revelações que a leitura desta obra põe desde logo em evidência é o leitor de poesia que Sérgio Almeida é. Encontramos nestas páginas homenagens implícitas e explícitas a Manuel António Pina, Jorge Sousa Braga, Herberto Helder, Wislawa Szymborska, Manoel de Barros, Sylvia Plath, entre outros (franceses, como Jacques Prévert ou Boris Vian), numa convivência poética que sendo contemporânea não esconde a tempos um especial gosto por ambientes e vozes tradicionais (por vezes rurais) ou temas nada fáceis como é o caso de uma muito peculiar (e difícil) relação com o divino (“Ele não está no meio de nós”; “Um deus imóvel é um deus inútil”). Talvez por isso, também, o humor seja um dos tons mais reconhecíveis nestas linhas – e a chave de resolução de vários poemas –, proporcionando ao poeta a distância necessária que lhe permite abordar certos assuntos, e presente desde logo nos títulos (cf. Poema pombalino, por exemplo), o que mostra, por parte do autor, a aguda consciência como também queria Miroslav Holub de que a poesia também é um jogo (“pobre pombo que encontrei na repartição a saldar o imposto de circulação aérea”). 

Daí que Sérgio Almeida não esconda o seu apreço por jogos de palavras (A cerca da vida por “acerca da vida”; O deserto de Sara por “O deserto do Sahara”; Ceci n’est pas la vie por “Ceci n’est pas une pipe”; “O que se passa na Eternidade / fica na Eternidade”, um trocadilho com a expressão aplicada a Las Vegas), ou mesmo oximoros (“O passado já lá vem”), estratégias menos vezes associados à emoção do que à razão, com a qual o poeta estabelece o contracto de leitura com o leitor. 

Nada disto rouba o lirismo que caracteriza os poemas. Simplesmente, o autor prefere uma poesia de exemplos, de matriz biográfica, com a qual constrói uma persona que atravessa o quotidiano, presente e passado, numa visão de Mundo da qual não está ausente por vezes um leve tom escatológico que, não sendo o dominante no livro, garante a Sérgio Almeida um lugar “de quem faz da margem / o seu eixo”.

A. M. PIRES CABRAL

 



CADERNETA DE LEMBRANÇAS

A. M. Pires Cabral

Tinta da China, Novembro 2021

152 páginas

A propósito da finitude da vida (“e as respectivas peripécias”), António Manuel Pires Cabral lançou-se neste livro numa tarefa tão difícil quanto o mais complexo dos temas: definir deus. “Que coisa é Deus?”, pergunta o poeta. 

E fá-lo, cedo se percebe, com a exacta consciência da extraordinária raridade que é alcançar uma epifania, como se o previsível insucesso da “maratona” (como a define) onde se socorre de memórias e observações na primeira metade do livro e de perguntas e divagações (que avançam “um centímetro ou dois”) na segunda, estivesse presente desde o início, sabotando cada poema deste “cântico apaziguado” onde tenta negociar o epílogo num “humilhante auto-de-rendição” (“nesse momento extremo / a tua compaixão falará mais alto”), consciente porém de que o faz recorrendo a “um demónio dentro”, por vezes sereno, por vezes revoltado, às vezes na Fé, às vezes na descrença, aqui com seriedade, além com humor. Desde o tom humilde a um tom desafiador (“que raio de critério / usas para atender ou não aos rogos”), são múltiplas as vozes usadas pela voz que fala nestes poemas, tendo em comum a percepção clara da existência de um tempo limitado sobre a Terra, curto demais para encetar um diálogo com o divino (“às vezes, na extremidade do medo”). 

Cada sucessivo poema pode, por isso, ser lido como uma nova tentativa de responder ao imbróglio criado pelo próprio autor: uma sequência de títulos na segunda metade é disso mesmo reflexo (cf. Para variar, Rota de colisão, Com um demónio dentro, Um deus lateral, Deus é assim, Implosão, Tanto silêncio), como se o poeta virasse e revirasse nas mãos o objecto em análise (deus) e umas vezes o perscrutasse de fora através de um novo ângulo, outras vezes o atravessasse (“eu preciso absolutamente de ver”), mostrando-se contudo sempre insatisfeito e frustrado com o resultado. 

A consciência prévia que tem da impossibilidade de levar a cabo a tarefa a que se impôs, leva o autor a recorrer não poucas vezes ao humor (“No dia em que houver uma palavra / ou mesmo apenas uma sílaba / saída da tua boca e / inequivocamente dirigida a mim – // – nesse dia, beberei meia garrafa de whisky”), bem como a desenvolver cenários (à revelia de Nietzsche mas tendo presente Giordano Bruno) que o ajudem a materializar algo que é abstracto e, de caminho, a lavrar uma opinião provocadora (como diz) sobre as fragilidades da religião e, já agora, sobre o mau-feitio de um deus que também abandona, usando para tanto aquela que tem sido uma das marcas formais mais características da sua poética: dividir um Tema específico em três ou quatro poemas assunto. 

Um exemplo: 1 - Deus existe e preocupa-se (“Simplesmente (e pede compreensão / para este seu modo de fazer as coisas), / tem aquele costume antigo / de vos responder por interpostos sons / – o vento, o mar, as aves, o trovão”); 2 - Deus existe mas não é de cerimónias (“Não vos estejais a incomodar, meus filhos, / passo muito bem sem essas demonstrações.”); 3 - Deus não existe (“E como havia de existir – / não sendo lanterna para tanta escuridão, / nem água para tanta sede?”); 4 - Deus existiu em tempos, mas supõe-se que morreu (outros dizem que foi assassinado (“Calma, senhores, nada de pânico, / pode ser que não tivesse morrido. / Pode apenas estar amortecido.”). A poesia, perguntando e respondendo, funciona como instrumento de procura e de construção do logos

Seja qual for a resposta, o que os versos refletem é uma insubornável busca pelo “tal relojoeiro / que pôs o universo em movimento”, cuja presença (se é verdade que não se torna mais evidente com o esforço hercúleo dos poemas que fecham o livro), seguramente que se encontra omnipresente nos ciclos poéticos que abrem a obra, e que o poeta dedica à sua experiência como paciente (cf. A um comprimido Hytacand), a alguns meses do ano, e a certos objectos artísticos que se encontram na sua geografia sejam retábulos, espigueiros ou escaleiras que, “Pelo sim, pelo não, vou tomar nota disso / na minha caderneta de lembranças.”. 

Mas, principalmente, omnipresente nos ciclos que dedica a animais, extraordinárias sequências de poemas que a par dos textos sobre arte rural são outro livro dentro deste livro e se constituem, isso sim, como a resposta possível (dada pelo próprio Mundo) à pergunta colocada sobre quem, como e onde está deus. Não deixa de ser revelador que, como um círculo que se completa, o poeta tenha dado a resposta à pergunta final do livro, logo no início. 

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA



 INTRODUÇÃO À PINTURA RUPESTRE

José Tolentino Mendonça

Assírio & Alvim, Outubro 2021

64 páginas

É sempre com redobrado interesse que leio cada novo livro escrito pelos poetas da minha geração, não apenas pelos textos em si, que raramente desiludem, mas pela natural curiosidade de tentar perceber o que acrescentam ao conjunto da obra poética de cada um deles: como a fazem evoluir. 

O lugar que Introdução à Pintura Rupestre ocupa na obra de José Tolentino Mendonça é o de uma Memória dos primeiros anos da sua infância, escrita não em prosa, como é habitual nas Memórias, mas em poesia. Daí que abundem as referências geográficas angolanas, desde o Cine-Esplanada Flamingo aos mangues e à Baía do Lobito nestes 19 poemas de pulsão narrativa, arredondados para cima com um texto sobre uma das avós do autor, A quem deixas o teu oiro, que trata do papel da Oralidade na transmissão de histórias, entre gerações.

Uma vez que o programa do livro é a Memória enquanto arquivo, e as memórias que a preenchem (“subespaços que se acendem lentamente”), predomina nos poemas uma dicção concreta onde os referentes convocados materializam imagens quase fotográficas. No poema A primeira magia, por exemplo, o poeta espanta-se com as aptidões da Memória (“como foi ela capaz de fotografar / este estilhaço, estas formas que ardem / o ruído do sangue que nunca cessa / e a solidão dos ossos”), que são depois ilustradas por uma sequência de textos (aliás muitíssimo bem estruturada, esboçando uma narrativa), onde não faltam alusões à própria memória comum da poesia (e da filosofia) e onde se divisam referências a Herberto Hélder, Ruy Belo, William Carlos Williams e a uma mão cheia de filósofos. 

“Uma parte da beleza do mundo permanece anónima”, escreve-se em A cesta, porém, o poeta trata de a colocar em evidência convocando momentos primaciais como a alegre azáfama das mulheres no fim da faina (“a mortal canção”) com uma alegria anterior à descoberta do fogo; o riso da abundância; a troca de bens que o mar proporciona aos pescadores (numa óbvia referência bíblica); a descoberta de um mundo singular de objectos (“provas milenárias de uma afinação”) e de animais do mar (“em profundidades / onde não existe / caçador nem presa”). 

Mas também a família, fundadora de um “mundo que se começa a ouvir no fundo da casa”, convocada por emoções onde predomina uma ternura tímida através de versos de uma beleza suspensa; ou pelas botas gastas do “avô Matias / caçador de baleias e ocioso tocador de bandolim (...) que jamais se saciaram de paisagens”; pela (difícil) bicicleta do pai; pela miséria de uma “existência selvagem e simples”, já que “as crianças que choram / duram mais que qualquer época”); ou ainda pela Guerra colonial, onde “Uma pessoa habitua-se facilmente / ao absurdo”); por alusões sociais (“Nessa década dizia-se que o socialismo / se chegasse seria de bicicleta”); por aventuras e histórias penosas ouvidas na infância como aquela que é narrada em Aconteceu no capim, poema admirável quer pelo tema, quer pela gestão estrofe a estrofe, do suspense narrativo.

Lendo estes poemas com detalhe é difícil resistir à tentação de perguntar quantos dos episódios aqui lembrados foram fundadores da pessoa civil em que José Tolentino Mendonça se tornou: é também para isso que se leem Memórias. Provavelmente todos: a memória é também uma construção do passado (ideal?), tal como o poeta sugere num dos poemas (“A vida dos nossos avós é inventada por nós”), e nesse sentido, este belíssimo livro de poesia fica como um registo dos primeiros anos de José Tolentino Mendonça, passados quer nas ruas do Lobito, quer (numa certa ocasião) na brancura de um hospital por culpa de um “punho infeliz”, onde o poeta foi colecionando palavras “sem nenhum nexo”, como quem descobre o fogo da linguagem, riscando no branco das paredes as primeiras imagens poéticas.